Por Tony Volpon, em 17.01.2022

(Broadcast+) – É um lugar comum na discussão sobre a política monetária no Brasil atribuir grande importância à política fiscal. Neste momento, esse debate ganhou maior relevância pela decisão do Executivo e do Congresso de mudar o cálculo do teto de gastos para, junto com o parcelamento de precatórios, poder expandir o gasto social sem cortar outras despesas – especialmente as emendas parlamentares, para este ano eleitoral.

Mudar as regras no meio do jogo nunca é aconselhável quando muito da eficácia de uma política tem a ver com sua credibilidade, ou como ela afeta as expectativas sobre sua condução futura. Isso certamente é verdade sobre as políticas fiscais e monetárias.

Desta forma, hoje nos encontramos na situação paradoxal de ter, em 2021, a forte possibilidade de voltar a ter um superávit primário – algo que não temos desde 2013 – e, ao mesmo tempo, um grande questionamento sobre a sustentabilidade fiscal no médio e longo prazo.

Há várias possíveis reações a esse paradoxo. Uma crítica, comum entre os mais à esquerda, é que a regra do teto, como constituída em 2016, era insustentável, e que desde então tivemos várias manobras e “furos”, como o “orçamento de guerra” em 2020 e a PEC dos precatórios com a mudança da indexação, em 2021.

Assim, a regra do teto não levou à desejada racionalização e priorização dos gastos, mas a um conjunto de medidas ‘ad hoc’ que minaram sua credibilidade como âncora fiscal e um irracional e insustentável corte nas despesas discricionárias, especialmente os investimentos.

Eu confesso ter simpatia com esses argumentos. Desde a sua implementação eu sempre achei que em algum momento a restrição rígida da regra do teto levaria a um traumático abandono. Ainda assim, temos de admitir que sua vigência foi um fator contribuinte para um maior alinhamento entre o crescimento nominal dos gastos e do PIB e, consequentemente, contribuiu para a forte queda de juros até 2021.

Mas o pânico do mercado em outubro foi justificado? As decisões tomadas em outubro foram sobre a política fiscal de 2022, já a política fiscal dos anos seguintes será objeto de debate durante o ciclo eleitoral. Assim, até se as decisões de outubro não tivessem “enterrado” a regra do teto, de qualquer maneira ela seria reavaliada durante a eleição deste ano, algo totalmente normal dentro do processo democrático vigente (onde, no Brasil, por bem ou mal, mudanças na nossa ‘supersized’ Constituição são normais e frequentes).

O que fez o Banco Central perante esses fatos? Basta ler cuidadosamente a ata da reunião do Copom de dezembro.

Lá fica claro que o Copom trabalhava com dois cenários. No seu cenário básico, com juros em 11,75%, a inflação projetada estava “ao redor da meta” para 2023. Mas, “questionamentos em relação ao arcabouço fiscal” que aumentaram o risco de desancoragem das expectativas “para prazos mais longos” levou o Copom a “considerar esse viés” e adotar (pelo menos em parte, isso não está claro) o seu cenário alternativo, onde a inflação projetada para 2023 está acima da meta. Por isso, “diante desse resultado, o Copom concluiu que o ciclo monetário deverá ser mais contracionista do que utilizado no cenário básico”.

Vamos tentar entender o que está acontecendo aqui. Vamos aceitar que, apesar do impulso imediato da política fiscal ser contracionista para a demanda em 2022, a perspectiva fiscal para prazos mais longos realmente piorou. Isso, como tentei mostrar acima, pressupunha um prejulgamento sobre o que será decidido na eleição deste ano, mas vamos aceitar essa premissa.

Isso sendo verdade, o impacto de primeira ordem de uma política fiscal estruturalmente mais frouxa deve ser um aumento na estimativa na taxa de juros neutra. Agora, se o Banco Central tiver liberdade para ajustar sua postura monetária a essa mudança da taxa neutra, não deveria haver impacto na trajetória futura da inflação. Simplificando: se a postura monetária pode ser mensurada como a diferença entre a taxa Selic e a taxa neutra, e o BC aumenta a trajetória da taxa Selic para refletir o aumento da taxa neutra, o impacto na inflação da piora fiscal estaria neutralizado.

Portanto, quando o Banco Central adota alguma versão dos “cenários alternativos”, que tem como resultado uma inflação maior, a instituição parece estar admitindo que tem algum impedimento em neutralizar a piora fiscal. Afinal, os “inputs” do Focus durante este período evidenciaram piora tanto nas estimativas de inflação como forte alta na trajetória futura da taxa Selic.

Isso obviamente não faz muito sentido, especialmente hoje que temos um Banco Central com autonomia formalmente reconhecida em lei.

O que fazer? Parece óbvio que as expectativas do mercado (representadas na pesquisa Focus), como também os instrumentos de mercado (feito as NTN-Bs que podem ser utilizadas para projetar a inflação futura), carregam um prêmio de risco. É possível argumentar que, frente aos últimos eventos como as incertezas eleitorais, que isso faz sentido. O mercado não pode pressupor que o Banco Central fará o necessário para domar a inflação em todos os possíveis cenários futuros.

Até aí tudo bem, o mercado pode acreditar no que quiser, mas isso não quer dizer que o próprio Banco Central deve aceitar, como seu novo cenário básico, esse temor do mercado. Mas quando, em seus modelos, o órgão usa as expectativas de inflação que carregam esse prêmio de risco, o próprio BC está, de fato, implicitamente admitindo e incorporando em suas projeções uma suposta incapacidade institucional.

Isso leva a um tipo de “contagem dupla” do impacto fiscal sobre a taxa de juros. A taxa Selic sobe por causa do (suposto) aumento da taxa neutra, e também sobe por causa da alta das expectativas de inflação. É óbvio que a probabilidade de um “overkill”, um aumento excessivo na taxa de juros, aumenta muito.

Uma visão alternativa seria que, independentemente da razão, toda e qualquer mudança nas expectativas deve ser compensadas pela política monetária. Mas aí entramos em um regime onde a meta não é mais a inflação, mas sim as expectativas de inflação do mercado financeiro. Obviamente isso representaria, tecnicamente e politicamente, uma indefensável operacionalização do sistema de metas.

Há maneiras de tratar esse problema (veja a equação 5, página 75, do último Relatório de Inflação), mas me parece pela descrição contida na ata da adoção do cenário “alternativo” como cenário básico, como também a afirmação no parágrafo 17, que o aperto deve continuar não somente até haver desinflação, mas também ancoragem dessas expectativas, que o erro de dupla contagem está sendo cometido, o que nos coloca em forte risco de ver a taxa Selic subir acima do necessário para garantir uma alta probabilidade da convergência da inflação ao redor da meta em 2023.