Por Tony Volpon, em 03.06.2022
(Broadcast) – Apesar do quase permanente estado de angst do mercado com a questão fiscal, os dados continuam a surpreender. Em abril, o superávit primário calculado pelo Banco Central foi de R$ 38,9 bilhões, superando as expectativas de R$ 30,1 bilhões, gerando um superávit primário de quase 1,4% do PIB. Não deveria escapar à nossa atenção que os dados fiscais e a inflação continuam a surpreender as expectativas do mercado. O fato de estarem interligados, e a grande surpresa deste período pandêmico tem sido como a enorme explosão de gastos não tem impactado negativamente a questão fiscal.
Isso não é somente um fenômeno brasileiro. Em recente relatório, mostramos como o que chamamos de “a surpresa do PIB nominal” derrubou índices de dívida em relação ao PIB tanto nos EUA como no Brasil. No caso brasileiro, sem essa “surpresa” estaríamos provavelmente já cruzando o simbolicamente importante patamar de 100% de endividamento em relação ao nosso PIB.
A dinâmica fiscal pode ser simplificada pela relação “r-g”, ou o diferencial entre a taxa de juros e a taxa de crescimento. O Brasil, com a infeliz combinação de alta taxas de juros e baixo crescimento, tem visto essa relação oscilar entre 5%-10% nos últimos anos, com pequenos “surtos” de queda (como em 2010, quando o crescimento econômico foi superior a 10%). Nos EUA isso tem sido ao contrário, com o período de baixa taxa de juros depois da crise de 2008 garantindo uma relação negativa por boa parte do tempo.
Com os impactos da pandemia, essa relação entrou em forte território negativo para ambos os países. Primeiro, a recessão acabou sendo algo momentâneo, concentrado nos poucos meses depois de março de 2020. Do outro lado, o surto inflacionário que começou a se manifestar já no fim de 2020, combinado com a complacência tanto do Federal Reserve como, em menor grau, do Banco Central, garantiu um período estendido de taxas de juros negativos, jogando a relação para algo ao redor de -6% no caso americano e -8% no caso brasileiro.
Assim podemos afirmar que os custos fiscais da pandemia foram cobertos com a imposição de um “one-off” imposto inflacionário. Lógico que isso não foi algo proposital por parte dos bancos centrais, apesar de ser totalmente previsível, dado o tamanho dos estímulos arquitetados pelas autoridades e a natureza dos efeitos econômicos da pandemia como um choque de oferta de pouca duração.
Já que não há “almoço livre” na economia, quem acabou pagando boa parte desse preço foram detentores de títulos de renda fixa (não atrelados a inflação). Isso pode ser visto nas fortes quedas (no caso dos EUA temos que voltar 40 anos para ver algo igual) dos índices de valor desses títulos, de 20% no caso brasileiro e de 12% no caso dos EUA, representando a destruição de trilhões de dólares (e reais) de poupança.
Assim a “boa notícia” fiscal agora cobra seu preço em ciclos de aperto monetário. No nosso caso, já temos taxas positivas de juros, e pelo menos nas nossas projeções devemos ver “r-g” voltar a um nível mais perto de 5%, gerando nova pressão sobre a dinâmica fiscal. No caso dos EUA, isso não é verdade: o mercado ainda está comprando a ideia de que o Federal Reserve vai conseguir debelar o surto inflacionário nos próximos anos com a taxa de juros real em território negativo. Assim “r-g” continuaria em território (menos) negativo.
No caso brasileiro, temos visto também uma forte alta da arrecadação que não pode ser totalmente explicado pelo efeito nominal da inflação. Parte disso tem a ver com a alta dos preços de commodities, assim lembrando algumas dos efeitos do último ciclo positivo do setor visto entre 2002-2011. Aqui acreditamos que alguma parte dessa melhora deva provar ser duradoura, já que devemos estar em um “super ciclo”, fruto de uma combinação de falta de investimentos no setor na última década (o que gera restrição de oferta); efeitos da “deglobalização” (veja, por exemplo, a retirada parcial da Rússia de vários mercados); e restrições de cunho ambiental e regulatório que devem impedir grandes novos investimentos no setor apesar da alta dos preços.
Tal oportunidade, junto com a “sorte” de ter saído da pandemia sem uma explosão de endividamento, deveria dar ao Brasil a chance de repensar a questão fiscal, algo que foi dominado nos últimos dez anos pela existência de um instransponível déficit primário, fruto do fim do último super ciclo de comodities.
Infelizmente, não é isso que temos observado, com o debate atual se limitando a, de um lado, aqueles que querem defender ou abolir o já praticamente enterrado teto de gastos, e, do outro, com medidas de cunho eleitoral para gastar o “excesso” de arrecadação. Vamos ver se, passado o período eleitoral, o próximo governo vai conseguir ver essas questões com um novo olhar.