Por Tony Volpon, em 25.07.2022

(Broadcast) – A ideia de uma economia perfeitamente balanceada – vinda da história infantil na qual o urso julga que o mingau não está nem muito frio nem quente, mas “na medida certa” – existe há bastante tempo no vocabulário econômico (a Wikipedia dá a primeira menção em 1966).

De fato, uma economia deve estar em um estado goldilocks, na maioria do tempo, se a intensidade e a frequência de choques exógenos se encontram dentro de um padrão normal e se os mecanismos de ajuste e compensação macroeconômicos estejam funcionando.

Bom, tudo que temos sofrido nesses últimos dois anos tem sido exatamente o contrário: uma sequência de fortes choques exógenos (pandemia, guerra) com os mecanismos de compensação – as políticas fiscais e monetárias – sendo mal calibradas e, assim, adicionando volatilidade à economia global, que hoje sofre o maior surto inflacionário desde os anos 1970.

Assim, é interessante tentar interpretar de maneira mais holística os recentes movimentos dos mercados.

Os ativos de risco têm performado bastante bem, com o S&P 500 subindo quase 10% das recentes mínimas (saindo do estado de bear market e mostrando uma queda de somente 17% das máximas históricas registradas no início deste ano). Até os índices europeus têm visto boas recuperações, como o Euro Stoxx 50, que subiu mais de 7% desde o início do mês (infelizmente o nosso Ibovespa não tem acompanhado essa tendência de recuperação e oscilando abaixo de 100 mil e perto das mínimas do ano quando precificado em dólares).

Enquanto isso, os mercados de renda fixa também têm se recuperado. A taxa da Treasury de dez anos, o “barômetro” das taxas de juros globais, está hoje em 2,8% depois de ter batido 3,5% em junho (aqui também infelizmente o Brasil não está seguindo o padrão global, com as taxas de mercado nos patamares máximos).

Nos mercados de câmbio, a marcha de alta quase ininterrupta do dólar americano – que começou em maio de 2021 – está finalmente se arrefecendo, tanto do ponto de vista do índice DXY de moedas de países desenvolvidos como dos índices de moedas emergentes.

Commodities também tem visto fortes correções da tendência de alta, como o petróleo, operando abaixo de US$ 100, e o índice de commodities da Bloomberg, corrigindo 17% das máximas (noto que todos esses preços/taxas são da abertura da última sexta-feira).

Uma explicação em comum para quase todos esses movimentos é que o mercado está prevendo uma relevante desinflação na economia americana.

Tal otimismo não tem muita base na inflação em si, com o CPI de junho superando as expectativas e chegando ao alarmante patamar de 9,1% ano/ano.

Mas o mercado sabe que a inflação de hoje é uma foto do passado, e uma série de dados antecedentes estão apontando para um nível de atividade mais fraca, especialmente para o mercado imobiliário (setor mais sensível à alta de juros) e o setor de manufaturados (que enfrenta uma combinação nociva de preços altos, excesso de estoques, e queda de consumo de bens a favor de serviços).

Esse padrão de ajuste é exatamente o que alguém deveria esperar de um processo de aperto monetário, começando pelos setores mais sensíveis, passando depois para o mercado de trabalho e finalmente para a inflação.

Mas como explicar a alta das bolsas? Esse incipiente processo de ajuste aponta para uma provável recessão na economia americana, o que não seria positivo para ativos de risco. Afinal, é bastante óbvio que teremos de ver uma economia bem mais fraca do que a atual para realmente domar a inflação, que já se disseminou para os salários (o wage tracker do Fed de Atalanta está rodando em 6,5% ao ano) e componentes inerciais (a média móvel de três meses anualizada do índice de componentes inerciais do Fed de Atlanta está rodando em 7,45% ao ano). Neste nível de inflação, quedas de commodities e alguma deflação em bens não são mais suficientes para restabelecer a perdida estabilidade inflacionária.

Uma explicação para o bom momento das bolsas globais seria que, com as quedas recentes, elas já estariam precificando uma forte recessão e, assim, como muitas vezes acontece em mercados especulativos, o “sinistro” do risco precificado acaba gerando uma reação positiva (o tal “vende no boato, compra no fato”).

Determinar exatamente o que está precificado nas bolsas é mais arte de que ciência, e tem indicador para justificar quase qualquer opinião. Isso dito, eu pessoalmente acho forçoso argumentar que uma queda das máximas de 17% deixou a bolsa americana ‘uma pechincha’ depois de ter subido 29% em 2021 e 62% em cinco anos.

Portanto, só posso concluir que o mercado está hoje prevendo o que podemos chamar de uma recessão goldilocks: forte o suficiente para derrubar a inflação, mas não tão forte a ponto de prejudicar a rentabilidade das empresas, justificando cotações menores.

Tal cenário benigno não é impossível, mas frente a uma economia global ainda muito deslocada de qualquer posição de equilíbrio, me parece altamente improvável. Acredito que o mercado acionário americano vai perder o sangue frio que tem demonstrado nessas últimas semanas quando o processo recessivo se estabelecer de fato e impactar o mercado de trabalho sem liquidar de vez a inflação.